segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Crônica. Gentil e os nossos fragmentos

Por Pedro Carrano* (um aceno a um dos melhores seres humanos que conheço)
´Só serão salvos os que forem flechas /capazes de uma nova ilusão / nada tem fim se ardes /o colosso celeste nas ondas futuras.
Só serão salvos os que soprarem /no carvão musical a sede´, Fernando José Karl.

 O ônibus passa em frente às estações-tubo, com certo risco de espremer alguém entre a velocidade das portas.

As janelas me conduzem a alguma distração nesse começo de 2015 de tantos apontamentos.
Ainda era 2009. Minha filha conseguia se equilibrar em um só antebraço. Gentil entrava em casa. Pequeno, veloz. A cabeça altiva, comandando e bem logo desfazendo a aparência de um corpo limitado e frágil.

Tinha voracidade de conversas. Era ágil. Em um pulo, adentrava em algum assunto da política, enquanto opinava sobre a qualidade da culinária que vinha ensaiando nas manhãs daqueles dias, no cuidado com a família. 

Os dedos um pouco trêmulos. Os óculos garrafais e cativantes de alguma época que insistia em permanecer e ter vida. Sem saber bem suas artes e métodos, quando se notava Gentil já fazia parte da sua vida e havia construído uma amizade de anos em poucos dias. 

Na verdade, desde antes ele era conhecido de relatos e todos já sabíamos o quanto ele já fez feito pelas questões sociais. Mas isso era narrado sempre pelos outros. Gentil preferia telefonar sempre para dizer coisas urgentes. Não se autoproclamava, não perdia tempo com “palabras largas ni aniversarios”, como diz a canção de Viglietti. 

Hoje, 2015, uma greve de professores. O descontentamento com a política. O aumento do preço de várias tarifas. A política volta a entrar na boca e na opinião de cada pessoa. A encruzilhada entre reformas populares ou o naufrágio. Coube à geração de Gentil o esvaziamento das ruas. Hoje, o ar de cada parada nas estações é diferente. 

- Teve uma vez, seis da manhã, éramos só nós conversando na garagem dos trabalhadores da coleta de lixo. 

Irritava-se com falta de seriedade e organização. Discordava de maneira sempre frontal. Logo se corrigia com um gesto afetuoso, sem abandonar suas verdades e posicionamentos. Em pouco tempo, tornava-se, torna-se, um pedaço da vida de cada um. Trazia novidades. Inventava saídas. Quando era preciso, recorria a um papel para explicar uma ideia. Sem ser um escritor, mas um desenhista, no ar e no papel, de muitos gestos. 

As cartas foram chegando da penitenciária estadual nos últimos anos, escritas em letras garrafais, com o carimbo da censura e vistoria do estado. Da parte de Gentil, nenhum dramatismo, apenas a busca de caminhos, soluções, apontamentos para uma vida futura. O bom humor e a auto-ironia com a própria situação difícil, contando também o trabalho de assistência e preocupação com outros presos. 

Há cinco anos, Gentil aguarda julgamento, ao lado de Adir e Dirceu, agendado para o dia 24 de fevereiro. Em um país de reforma agrária engessada e conflitos agrários não resolvidos, de homens e mulheres abandonadas nos cárceres -, muitas vezes literalmente pelo roubo de uma galinha –, anos à espera de uma sentença. Os presídios hoje são masmorras lucrativas, vide a máfia das empresas de alimentação. 

No programa do Ratinho, uma jornalista defende o endurecimento. Meu olhar abandona a janela do ônibus. No banco de trás, alguém comenta que ela estava correta. 

Na cidade de janelas, velocidade e mensagens, eu pensava que Gentil, mesmo com a deficiência física, há cinco anos suporta a cela ao lado de seis outros presos. Ele que, estudioso, debochava de quem vivia no plano da verborragia. Viveu, sem dúvida, uma das experiências mais duras de um militante social de Curitiba. 

Os amigos de Gentil reúnem-se nas redes sociais. Em pouco tempo são centenas, que multiplicam narrativas da sua vida. Pessoas de diferentes gerações, entidades, organizações, momentos, igrejas e partidos. Gentil transcendia qualquer rótulo. 

O ônibus segue pela via estrutural. A passagem aumentou para R$ 3,30.
Por um minuto, me sinto desnorteado, com um aperto e ao mesmo tempo um turbilhão por dentro. Vacilo um pouco e reencontro a rua. Desço no ponto de ônibus errado e ainda tenho que caminhar até uma imensidão de bandeiras, de um centro cívico com rostos de professores. 

Me permito sonhar com Gentil, Adir, Dirceu, livres da prisão.Gentil surgindo num relance, curioso pelas novidades, sem muito tempo para explicar tudo o que aconteceu.

Na sua velocidade mágica de sempre, deixando para nós essa tarefa de contar suas histórias.

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Pedro Carrano é jornalista e diretor do Sindicato dos Jornalistas do Paraná. Autor do livro "Três Vértebras e um primeiro testamento".

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