domingo, 17 de agosto de 2014

Golpe por centavos

 O terminal de ônibus está lotado. Reflexo da demora do Ligeirão que nem a substituição de prefeito conseguiu parar. As pessoas, cabisbaixas, interagem com seus celulares. De repente, um aplicativo vindo de fora de seus celulares chama-lhes a atenção.  É uma voz, grossa. Todavia, o 'App real’ não é suficiente para despertar o interesse de muitos, que se mantêm-se firmes na tela de seus smartphones ou de rabo de olho no horizonte em busca do azulão que não se aproxima. Mesmo assim, o timbre e seu dono, insistem:

– Dá algum dinheiro para o morador de rua. Ajudem o movimento dos moradores de rua com algumas moedas.


O estilo e as palavras escolhidas não pareciam buscar uns trocos para matar a fome ou comprar uma bebida alcoólica. O seu discurso transportava, na verdade, um tom político. Tanto que o modo apelativo daquele pedinte despertou a solidariedade em alguns passageiros. Uma senhora depositou em sua mão um pequeno soldo. Confiante, carregando seus trapos, ciente que não seria perturbado pelos guardas do ambiente, repetiu seu mote:

– O movimento dos moradores de rua necessita de sua contribuição para seguir lutando.

Contudo, diante da moça mais esperta e de seu amigo, a propaganda não embarcou. Ambos responderam: “Não tenho”, dentro daquela convenção de que se é necessário negar educadamente para não correr o risco de ser retaliado. Se estivesse nas redes sociais, teria postado: “Eu não dou meus centavos pra pedintes”, ou “sai pra lá, vagabundo”, seguido de #ninguemmerece e #bolsaesmola. Enfim, no cara a cara, a interação que prevaleceu foi o “não tenho” tão protocolar quando a postura do pedinte que seguiu adiante, de plataforma em plataforma.

Contudo, ainda aguardando o transporte, a moça pôs em dúvida a honestidade alheia. Naqueles poucos segundo que havia se relacionado com o mendigo conseguiu ver que ele não estava tão mal vestido, que a barba estava de certa forma aparada, que não tinha odor insuportável, tampouco aparência sofrida. Ao que concluiu, após descrever ao amigo o perfil, de que aquilo era um golpe. O morador de rua era um golpista que se aproveitava da distração intelectual e da fadiga matinal de tantos trabalhadores para tomar algumas moedas na lábia dos passageiros.

Um golpe por centavos. Essa era a grande sacada que a moça havia percebido naquele pedinte. Seria realmente um sujeito de má fé querendo levar vantagem em troca de alguns trocados. Seria ele o perfeito exemplo do que há de mais repugnante nesta sociedade corrupta. Era o que ela deu a entender ao colega quando entrou no ônibus feliz por não ter sido iludida. #rodoumané

Curiosamente, o que a moça não percebe é que ela também é golpista. Uma embusteira com direito a crachá e uniforme. Pois, já dentro do coletivo, era possível mapear sua calça preta, sua camiseta azul marinha e o logo vermelho da empresa de celular em que ela trabalha. Suspeita confirmada quando desceu no ponto de ônibus em frente ao call center. Ali, provavelmente, ela passa o dia a ligar para clientes oferecendo produtos e vantagens. “Se o senhor fizer o plano X, leva gratuitamente internet gratuita ou pode escolher 100 torpedos (embora todo mundo utilize o WhatsApp)”. “Não, senhora, não tem desconto se a senhora não quiser escolher um número de telefone favorito. São normas do governo”. E segue nesta linha o dia inteiro até conseguir enrolar o maior número de tolos e ser premiada pelo chefe com o seu salário (menos o lucro) mensal.

#Seliga, não há com o que se revoltar. Todos nós somos alvos algum tipo de golpe na vida, no ano, ou diariamente. Eu por exemplo, sou vítima diária de um golpe consciente: que é saber ser enrolado, mas aceitar tranquilamente. Descendo do ônibus, vou frequentemente ao mercado da esquina para comprar dois pães de queijo. Custa R$ 0,69 cada. Pago sempre R$ 1,40 e nunca reclamo os dois centavos de troco. Parece pouco, mas é muito. Considere que o mercado vende três mil pães de queijo diários. Num mês, entre dias com mais e menos venda, chega-se a 70 mil pães de queijo. Tire agora os centavos não devolvidos e me diga com quem ficou o níquel surripiado? Com os empregados, com certeza não, pois em dezembro sempre se disponibiliza a caixinha para os funcionários.


Dessa forma segue a microeconomia em que a malandra trabalhadora do call center nega auxiliar o mendigo ao custo de apenas um torpedo, a loja de conveniência brinda seu fiel cliente com um guarda-chuva, após ele acrescer alguns reais no final da compra, a emissora de TV que sonega impostos e paga salários milionários aos seus colaboradores pede sua doação e seguimos alegremente depositando nosso dinheiro em um banco para ser utilizado como moeda de especulação financeira pelos banqueiros. Pois, como diz o ditado popular, se é pra sujar as mãos, que seja aos milhões.
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Crônicas do Manolo

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