quarta-feira, 4 de março de 2015

Maria, Marianela, Marieta. Narrativa de uma mulher salvadorenha

Por Pedro Carrano

E Maria não se dava conta. De tão acostumada, não punha os olhos em alerta, nem os ombros tensos, nem tinha o silêncio de espanto como aquele nosso.

Éramos nós quem apontávamos as contradições: galerias comerciais imensas, contornadas pelo néon das grandes redes de comida rápida. Indígenas baixinhos defendendo farmácias e lojas com fuzis M-12. Senhoras carregando a bolsa com as duas mãos, na frente do corpo. Muitos telhados e paredes de zinco à beira das ruas, das estradas, dos morros.

Em San Salvador, o túmulo do bispo Oscar Romero fica escondido no subsolo da igreja central, enquanto os fiéis e as mercadorias transitam livres pelos mercados populares.


E Marianela apenas ria. O sorriso quase completo de dentes. Os olhos adolescentes na cara enrugada pelo trabalho e talvez pelo clima desse pequeno terreno entre dois oceanos. O começo da vida fugindo da guerra, carregada pelas montanhas adentro. A outra parte numa fábrica maquiladora de roupas. E agora a militância na organização de mulheres maquileras. Insistia que nós dois, eu e Venâncio, tínhamos cara de criança e éramos branquelos.

– Fui estrupada com seis anos durante a guerra pelos soldados do exército. Quando eu já tinha vinte, me agarraram na saída do colégio. De novo. Daquela vez foram os maras (gangues), Marina dizia, naquele ônibus da linha 26 em alta velocidade.

Eu e Venâncio mantínhamos aquele nosso silêncio desarmado. E os olhos para fora, fugindo dos olhos de Marieta. Com uma naturalidade dolorosa, eles buscavam prender-se nos nossos, rindo sempre. Venâncio estava em pior condição, de pé naquele ônibus escolar datado de alguma década perdida. Resultado: as janelas eram muito baixas e meu amigo não tinha muito para onde olhar.
- Meus irmãos, os dois morreram na guerrilha.

Não sabíamos como dizer a Marieta: mas as coisas, a vida da gente são rios que se chocam por dentro com outras correntes, por baixo da superfície. Mas assim mesmo ela insistia em perguntar por que tínhamos deixado o Brasil, por que estávamos no menor país de toda a América. Queria, talvez, uma cronologia e uma sequência. O que não tínhamos ou então não queríamos dar a ela uma resposta confortável.

Um ciclista quase foi atropelado no viaduto pelo nosso ônibus desenfreado.

Éramos rápidos em escapar dessas situações e delimitar as coisas a ferro e fogo. Venâncio apelava para a política. Marianela não gostou quando voltamos a perguntar sobre as eleições. O ônibus parava, precisava novamente lotar de passageiros. O tempo se estendia naquela ilha de calor. San Salvador era atravessada de cabo a rabo, margeávamos lentamente um vulcão adormecido. A região de fábricas maquiladoras, San Marcos, para onde Marieta prometeu nos levar.

–Estou melhor. O trabalho com as mulheres também me ajuda. O psicólogo também. Adivinhem: estou apaixonada por um de vocês dois, adivinhem qual.

San Marcos fica em frente ao ponto final da linha 26, em um mercado com telhados a perder de vista, ao lado de um comitê do partido oficialista da época da ditadura. Ela nem quis saber se estávamos com a direita neoliberal ou com a esquerda moderada nas próximas eleições de março. Venâncio, empolgado com a pele, carne e ossos do novo idioma, divertia-se como criança com aquele velho brinquedo de explicar a tal da palavra saudade.

– Vocês são loucos, querem dar a vida por este país.

Era preciso organizar tudo, colocar as perguntas em ordem, cumprir o questionário coerente com a nossa reportagem. As trabalhadoras deixavam algum dos vários galpões de produção. Conheciam e saudavam Maria. Quatro da tarde, as poucas que cumpriam a meta diária de 700 peças de roupa podiam deixar a fortaleza protegida de guardas. Admiravam o trabalho atual de Marieta.
– Conseguiu sair deste inferno, que bom, hã.

Algumas saíram, outras voltam. Sempre voltam ao ponto de partida. Na avenida, um caminhão carregado de cana-de-açúcar quase nos atropela. O campo de futebol ali perto era de terra branca. Meninos nos distraíam – entre um silêncio e outro – jogando terrivelmente mal, no país que se orgulhava de ter sofrido a maior goleada da história de uma Copa do Mundo. O final de tarde devia trazer para todas elas, Marias, Marietas, Marianelas, um certo alívio cortado entre o fim do serviço e a consciência da chegada do dia seguinte.

– Temos que dormir por aqui perto, em um quarto alugado. Somos todas de povoados, que ficam muito longe.

Somos apresentados a Carmen. Naquele momento ela tentava controlar a mandíbula trêmula. O rosto índio encarregava de afastar qualquer dramatismo. Mas era dor e ódio o que exalava. O gerente da sua equipe de trabalho colou uma tartaruga na máquina de costurar de Carmen. Para as mais produtivas era colado um furacão. O pior não era isso: a compensação das metas e o sábado a tarde passados dentro da masmorra.

Amaya estava grávida de oito meses, tomando uma Coca no mercado. Falou nos Estados Unidos, destino do final de ano. A crise, o desemprego, a deportação diária e os mais de três mil quilômetros de distância não eram piores do que aquela coreana de topete, que deixou a fábrica maquiladora a bordo de um Toyota reluzente. A verdade é que rosnamos juntos para a proprietária.

– Dizem que as grávidas não são deportadas pela migração gringa. Talvez os caras cobrem uma propina. Meu marido e meus irmãos já estão lá. Em El Salvador também já estão demitindo e não há trabalho para os homens.

O segurança da fábrica maquiladora estava tomando fotos, apontava o dedo para o resto da sua equipe, fixava a nossa cara. O cotidiano não cobrava nem uma dose de espanto a Marieta.

– Vocês querem ir embora? Está escurecendo e ficando perigoso aqui, riu.

O trajeto de retorno se dissolvia na cidade noturna, pontuada de luz à sombra do vulcão. Os relatos concretos marcavam o compasso dos nossos pensamentos solitários. Como foi a despedida de Maria não está bem certo na minha memória.

Se não me engano, ela perguntou a Venâncio como foi o nosso final de semana passado, a praia de La Libertad, o azul do Pacífico.


San Marcos, El Salvador, janeiro de 2009. 

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