E Maria não se dava
conta. De tão
acostumada, não punha os olhos em alerta, nem os ombros tensos, nem tinha o
silêncio de espanto como aquele nosso.
Éramos nós quem apontávamos as contradições: galerias
comerciais imensas, contornadas pelo néon das grandes redes de comida rápida.
Indígenas baixinhos defendendo farmácias e lojas com fuzis M-12. Senhoras
carregando a bolsa com as duas mãos, na frente do corpo. Muitos telhados e
paredes de zinco à beira das ruas, das estradas, dos morros.
Em San Salvador, o túmulo do bispo Oscar Romero fica
escondido no subsolo da igreja central, enquanto os fiéis e as mercadorias
transitam livres pelos mercados populares.
E Marianela apenas ria. O sorriso quase completo de dentes.
Os olhos adolescentes na cara enrugada pelo trabalho e talvez pelo clima desse
pequeno terreno entre dois oceanos. O começo da vida fugindo da guerra,
carregada pelas montanhas adentro. A outra parte numa fábrica maquiladora de
roupas. E agora a militância na organização de mulheres maquileras. Insistia que nós dois, eu e Venâncio, tínhamos cara de
criança e éramos branquelos.
– Fui estrupada com seis anos durante a guerra pelos soldados
do exército. Quando eu já tinha vinte, me agarraram na saída do colégio. De
novo. Daquela vez foram os maras (gangues),
Marina dizia, naquele ônibus da linha 26 em alta velocidade.
Eu e Venâncio mantínhamos aquele nosso silêncio desarmado. E
os olhos para fora, fugindo dos olhos de Marieta. Com uma naturalidade dolorosa,
eles buscavam prender-se nos nossos, rindo sempre. Venâncio estava em pior
condição, de pé naquele ônibus escolar datado de alguma década perdida.
Resultado: as janelas eram muito baixas e meu amigo não tinha muito para onde
olhar.
- Meus irmãos, os dois morreram na guerrilha.
Não sabíamos como dizer a Marieta: mas as coisas, a vida da
gente são rios que se chocam por dentro com outras correntes, por baixo da
superfície. Mas assim mesmo ela insistia em perguntar por que tínhamos deixado
o Brasil, por que estávamos no menor país de toda a América. Queria, talvez,
uma cronologia e uma sequência. O que não tínhamos ou então não queríamos dar a
ela uma resposta confortável.
Um ciclista quase foi atropelado no viaduto pelo nosso ônibus
desenfreado.
Éramos rápidos em escapar dessas situações e delimitar as
coisas a ferro e fogo. Venâncio apelava para a política. Marianela não gostou
quando voltamos a perguntar sobre as eleições. O ônibus parava, precisava
novamente lotar de passageiros. O tempo se estendia naquela ilha de calor. San
Salvador era atravessada de cabo a rabo, margeávamos lentamente um vulcão
adormecido. A região de fábricas maquiladoras, San Marcos, para onde Marieta
prometeu nos levar.
–Estou melhor. O trabalho com as mulheres também me ajuda. O
psicólogo também. Adivinhem: estou apaixonada por um de vocês dois, adivinhem
qual.
San Marcos fica em frente ao ponto final da linha 26, em um
mercado com telhados a perder de vista, ao lado de um comitê do partido oficialista
da época da ditadura. Ela nem quis saber se estávamos com a direita neoliberal
ou com a esquerda moderada nas próximas eleições de março. Venâncio, empolgado
com a pele, carne e ossos do novo idioma, divertia-se como criança com aquele
velho brinquedo de explicar a tal da palavra saudade.
– Vocês são loucos, querem dar a vida por este país.
Era preciso organizar tudo, colocar as perguntas em ordem,
cumprir o questionário coerente com a nossa reportagem. As trabalhadoras
deixavam algum dos vários galpões de produção. Conheciam e saudavam Maria.
Quatro da tarde, as poucas que cumpriam a meta diária de 700 peças de roupa
podiam deixar a fortaleza protegida de guardas. Admiravam o trabalho atual de
Marieta.
– Conseguiu sair deste inferno, que bom, hã.
Algumas saíram, outras voltam. Sempre voltam ao ponto de
partida. Na avenida, um caminhão carregado de cana-de-açúcar quase nos
atropela. O campo de futebol ali perto era de terra branca. Meninos nos
distraíam – entre um silêncio e outro – jogando terrivelmente mal, no país que
se orgulhava de ter sofrido a maior goleada da história de uma Copa do Mundo. O
final de tarde devia trazer para todas elas, Marias, Marietas, Marianelas, um
certo alívio cortado entre o fim do serviço e a consciência da chegada do dia
seguinte.
– Temos que dormir por aqui perto, em um quarto alugado.
Somos todas de povoados, que ficam muito longe.
Somos apresentados a Carmen. Naquele momento ela tentava
controlar a mandíbula trêmula. O rosto índio encarregava de afastar qualquer
dramatismo. Mas era dor e ódio o que exalava. O gerente da sua equipe de
trabalho colou uma tartaruga na máquina de costurar de Carmen. Para as mais
produtivas era colado um furacão. O pior não era isso: a compensação das metas
e o sábado a tarde passados dentro da masmorra.
Amaya estava grávida de oito meses, tomando uma Coca no
mercado. Falou nos Estados Unidos, destino do final de ano. A crise, o
desemprego, a deportação diária e os mais de três mil quilômetros de distância
não eram piores do que aquela coreana de topete, que deixou a fábrica
maquiladora a bordo de um Toyota reluzente. A verdade é que rosnamos juntos
para a proprietária.
– Dizem que as grávidas não são deportadas pela migração
gringa. Talvez os caras cobrem uma propina. Meu marido e meus irmãos já estão
lá. Em El Salvador também já estão demitindo e não há trabalho para os homens.
O segurança da fábrica maquiladora estava tomando fotos,
apontava o dedo para o resto da sua equipe, fixava a nossa cara. O cotidiano
não cobrava nem uma dose de espanto a Marieta.
– Vocês querem ir embora? Está escurecendo e ficando perigoso
aqui, riu.
O trajeto de retorno se dissolvia na cidade noturna, pontuada
de luz à sombra do vulcão. Os relatos concretos marcavam o compasso dos nossos
pensamentos solitários. Como foi a despedida de Maria não está bem certo na
minha memória.
Se não me engano, ela perguntou a Venâncio como foi o nosso
final de semana passado, a praia de La Libertad, o azul do Pacífico.
San Marcos, El Salvador, janeiro de 2009.
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