quarta-feira, 25 de março de 2015

Inédita lembrança – trecho de um filme futurista

 ...nos dias quando fazia sol, a sociedade e o mundo já se haviam acabado, era seu hábito escolher, no jogo de dados, um dos pontos da cidade abandonada que lhe despertasse alguma forma de recordação. Bastava traçar um mapa, eliminar os pontos já lembrados anteriormente, já imersos e submersos, e partir em busca de novos passados e velhas vivências. Pesadas, maciças, densas, recuperáveis a certo preço. Podia ser alguma casa onde viveu, alguma várzea onde brincou com a filha, algum vazio de mesa e cadeira onde o amor. Escolhia as tardes sem nuvens, normalmente nos invernos. Já se haviam passado vários deles. Perdera a conta. Ele, na condição de um dos últimos remanescentes, encontrava essa maneira de estabelecer alguma conexão com os fatos, em um planeta que já não vivia mais de fatos. Há anos ele se revezava entre os dias quando ficava escondido na sua toca contra qualquer possível inimigo e também contra a umidade do ar. E o restante das horas era dedicado a buscar referências afetivas. O que podia ser tedioso tornava-se excitante, um estranho empirismo, buscado ao inverso, essa procura em vôo cego de pedaços de mundo que ele já nem se lembrava que se lembrava. E assim sua vida não parecia sem perspectiva e o caminho o projetava para seguir traçando o mapa. Dia a dia, novos lugares vividos saltavam aos olhos, o forçavam a deter-se em frente. E ele aguardava ansioso pela inédita lembrança....
____________________

Por Pedro Carrano

Nenhum comentário:

Postar um comentário