sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Poema: Deixa-me! Não estarei só


Deixa-me! Não estarei só*
                À Regine Olsen


Um coração abandonado jamais prossegue sozinho.
Acompanham-no nesse instante suas paixões:
Ele é acolhido pela angústia
É tomado pela cólera
Acalenta-se com a melancolia
Lamenta ao lado do ódio e abraça a compaixão
Requer e se apega à esperança, sequer repele a vingança.

Um coração reprimido nunca fica solitário.
A sua consciência apresenta-se como guarda-chuva
para a tempestade nos olhos;
Ela estende a mão à dúvida, ele se reprime.
Um coração prefere a insegurança, prefere o pânico
sorri para a individualidade, lamenta que haja a solidariedade e pactua com a mentira
Nesse momento, até a loucura e o juízo se unem para embalá-lo com um cântico de ninar.

Um coração esquecido jamais dói perdido.
Os remédios – calmantes e antiinflamatórios –
são escondidos pelo organismo.
E as dores se encontram pelo corpo.
As costas choram e se contorcem com os suspiros do pulmão.
A azia queima
A testa enrugasse e se esconde como um cão de rua molhado,
chutado num beco  gelado por aquele que sugeria recolhê-lo.

A boca racha
As córneas vulcanizam
Os olhos entram em erupção
A garganta arranha
O nariz corrói
Os ouvidos explodem em estampidos de silêncio.

E as unhas, as pontiagudas unhas, sagram as mãos!

O coração desamparado, coagido e afastado
evita os préstimos dos sentimentos, dos conhecimentos e do físico.
O coração, sôfrego, prefere estar desamparado.

Mas da Ausência é impossível exilar-se:
Tanto que o pescoço e os ombros se revelam tensos
No caminho entre os sonhos e os pensamentos.

Ah, quanto encontro consigo
ocorre durante a solidão humana
em que o incidente exíguo
desperta instintos nobres e profanos
_________
* Do livro, "30 poemas e contos que doem"
Manolo Ramires


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Crônicas: Na parada nenhum emprego para


 O que me impressiona no capitalismo é a sua capacidade de se inventar empregos. Nunca se viu ou verá entre outras sistemas econômicos tanta oferta de trabalho formal e, principalmente, informal. Essa é a grande proeza do capitalismo: incentivar a criatividade para sobreviver. Duvido que o socialismo seja capaz de ofertar tantas alternativas. No creo! No meu imaginário, os socialistas só são capazes de produzir funcionários para estatais, proletários, camponeses e frustrados. Já no capitalismo qualquer merd. é adubo para dinheiro, gerando outro emprego dependente e até carteira assinada. Claro que essa argumentação arrepia os sociólogos. É senso comum. Mas o povão, grande artista da fome, não enche a barriga com teorias.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Crônica: Matinal

 São 6 horas. Até um pouco mais cedo. Repousado sobre a grama está o Orvalho. Reina soberano na copa das árvores e nos ombros de outros seres do reino vegetal.  Nem os pára-brisas dos automóveis e afins ficam imunes a sua excelência. Assim como os telhados de vasto colorido que ficam pincelados alvamente.  O Orvalho, no entanto, não oprime as pessoas e as coisas. Postura tão distante de tantas tiranias democráticas atuais. Tanto que seu período de regência é ínfimo ao longo do dia. Ainda cedo – só um pouco mais tarde – dá lugar ao cotidiano raio solar, não rivaliza com a garoa ou sequer sente inveja da neve. Só uma coisa incomoda em seu reinado: é costumeiro à timidez. Não aparece em todos os locais do país ou do mundo. E para se mostrar ainda exige condições climáticas especiais. Mesmo assim, é muito mais próximo das pessoas em seus jardins residências do que uma ida a Roma para identificar seu trono ou coroa.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Crônica: Village Viuvez


 O prédio das viúvas fica lá no Centro Cívico. Ele abriga algumas senhoras de avançada idade. O que é por si só um bom motivo para não terem mais maridos. Outras até têm fisionomia de senhoritas e são realmente mais jovens. Menos de 40. Mesmo assim, estão sem companheiros. São ex-esposas de militares, ex-mulheres de bancários, jornalistas, funcionários públicos e até, mal dizem, dum operário.

Que habitação incrível! Um prédio só de viúvas. Tudo bem que não é um arranha céu com trinta e tantos andares. Têm lá no máximo quinze apartamentos. Todos ocupados por esposas viúvas da silva. Curiosamente, até mesmo os três imóveis alugados são resididos por mulheres cujos maridos faleceram. Nesta perspectiva, entende-se que ali mulher desquitada não reside. Se há uma exceção no local, é o porteiro. Ele é casado e tem netos. Mas nem ele ou tampouco sua esposa moram no Village Viuvez.