O terminal de ônibus está lotado. Reflexo da demora do
Ligeirão que nem a substituição de prefeito conseguiu parar. As pessoas,
cabisbaixas, interagem com seus celulares. De repente, um aplicativo vindo de
fora de seus celulares chama-lhes a atenção. É uma voz, grossa. Todavia, o 'App real’ não é
suficiente para despertar o interesse de muitos, que se mantêm-se firmes na
tela de seus smartphones ou de rabo de olho no horizonte em busca do azulão que
não se aproxima. Mesmo assim, o timbre e seu dono, insistem:
– Dá algum dinheiro para o morador de rua. Ajudem o
movimento dos moradores de rua com algumas moedas.
O estilo e as palavras escolhidas não pareciam buscar uns
trocos para matar a fome ou comprar uma bebida alcoólica. O seu discurso transportava,
na verdade, um tom político. Tanto que o modo apelativo daquele pedinte
despertou a solidariedade em alguns passageiros. Uma senhora depositou em sua
mão um pequeno soldo. Confiante, carregando seus trapos, ciente que não seria
perturbado pelos guardas do ambiente, repetiu seu mote:
– O movimento dos moradores de rua necessita de sua
contribuição para seguir lutando.
Contudo, diante da moça mais esperta e de seu amigo, a
propaganda não embarcou. Ambos responderam: “Não tenho”, dentro daquela
convenção de que se é necessário negar educadamente para não correr o risco de
ser retaliado. Se estivesse nas redes sociais, teria postado: “Eu não dou meus
centavos pra pedintes”, ou “sai pra lá, vagabundo”, seguido de #ninguemmerece e
#bolsaesmola. Enfim, no cara a cara, a interação que prevaleceu foi o “não
tenho” tão protocolar quando a postura do pedinte que seguiu adiante, de
plataforma em plataforma.
Contudo, ainda aguardando o transporte, a moça pôs em dúvida
a honestidade alheia. Naqueles poucos segundo que havia se relacionado com o
mendigo conseguiu ver que ele não estava tão mal vestido, que a barba estava de
certa forma aparada, que não tinha odor insuportável, tampouco aparência
sofrida. Ao que concluiu, após descrever ao amigo o perfil, de que aquilo era um
golpe. O morador de rua era um golpista que se aproveitava da distração
intelectual e da fadiga matinal de tantos trabalhadores para tomar algumas moedas
na lábia dos passageiros.
Um golpe por centavos. Essa era a grande sacada que a moça
havia percebido naquele pedinte. Seria realmente um sujeito de má fé querendo
levar vantagem em troca de alguns trocados. Seria ele o perfeito exemplo do que
há de mais repugnante nesta sociedade corrupta. Era o que ela deu a entender ao
colega quando entrou no ônibus feliz por não ter sido iludida. #rodoumané
Curiosamente, o que a moça não percebe é que ela também é
golpista. Uma embusteira com direito a crachá e uniforme. Pois, já dentro do
coletivo, era possível mapear sua calça preta, sua camiseta azul marinha e o
logo vermelho da empresa de celular em que ela trabalha. Suspeita confirmada
quando desceu no ponto de ônibus em frente ao call center. Ali, provavelmente,
ela passa o dia a ligar para clientes oferecendo produtos e vantagens. “Se o
senhor fizer o plano X, leva gratuitamente internet gratuita ou pode escolher
100 torpedos (embora todo mundo utilize o WhatsApp)”. “Não, senhora, não tem
desconto se a senhora não quiser escolher um número de telefone favorito. São
normas do governo”. E segue nesta linha o dia inteiro até conseguir enrolar o
maior número de tolos e ser premiada pelo chefe com o seu salário (menos o
lucro) mensal.
#Seliga, não há com o que se revoltar. Todos nós somos alvos
algum tipo de golpe na vida, no ano, ou diariamente. Eu por exemplo, sou vítima
diária de um golpe consciente: que é saber ser enrolado, mas aceitar
tranquilamente. Descendo do ônibus, vou frequentemente ao mercado da esquina
para comprar dois pães de queijo. Custa R$ 0,69 cada. Pago sempre R$ 1,40 e
nunca reclamo os dois centavos de troco. Parece pouco, mas é muito. Considere que
o mercado vende três mil pães de queijo diários. Num mês, entre dias com mais e
menos venda, chega-se a 70 mil pães de queijo. Tire agora os centavos não
devolvidos e me diga com quem ficou o níquel surripiado? Com os empregados, com
certeza não, pois em dezembro sempre se disponibiliza a caixinha para os
funcionários.
Dessa forma segue a microeconomia em que a malandra trabalhadora
do call center nega auxiliar o mendigo ao custo de apenas um torpedo, a loja de
conveniência brinda seu fiel cliente com um guarda-chuva, após ele acrescer
alguns reais no final da compra, a emissora de TV que sonega impostos e paga
salários milionários aos seus colaboradores pede sua doação e seguimos alegremente
depositando nosso dinheiro em um banco para ser utilizado como moeda de
especulação financeira pelos banqueiros. Pois, como diz o ditado popular, se é
pra sujar as mãos, que seja aos milhões.
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Crônicas do Manolo
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