segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Crônicas dos Excluídos: Papagaio de prédio*

Eu diria que é raro alguém deixar nossa dirigente em apuros retóricos, sem palavras, mas naquele dia aquela senhora a deixou. Mais do que isso, a deixou sem voz e contra-argumentos. Tanto que Pimenta (seu apelido no meio sindical) se calou e apenas ouviu atentamente a exposição feita pela doce anciã. A prosa fluía por seus lábios como se fosse decorada, ensaiada exaustivamente com refinamento que até Constantin Stanislavski assinaria embaixo. Uma vez o diretor expôs: “A fala é música e quando se controla seus movimentos e lhes acrescenta palavras e voz (coerentes), parece-me que isso se torna tão harmonioso ao ponto de se tornar um lindo cantar”.

Foi através dessa técnica - o falar sussurrado - que eu vi Alessandra ser deslocada do duetto para a plateia desse monólogo. Logo ela que não precisa de microfone ou megafone para propagar suas ideias. Basta-lhe apenas olhar fixamente a multidão e expor seus pensamentos. Certa vez, por exemplo, acompanhei uma assembleia no segmento da saúde ser apaziguada apenas no gogó bem entoado e na ideia proferida sem receios. Semelhante a Königin der Nacht. Não é a toa que dizem sobre ela: “As pessoas levitam em torno de você”. Todavia, dessa vez a gravidade dela foi absorvida pela entonação suave da senhora, de suas pausas curtas e sofridas, de sua cadência a la Mio Babbino Caro. E, conforme as palavras fluíam, a dirigente sindical se deixava convencer pela verdade interior que transbordava da boca sábia. Seu semblante a convencia, sua verve a dobrava...
Aqui, entre nós, aos olhos dos leitores, pode até parecer que essa cena durou alguns minutos. Só que não passou de três. Bastou o caminhão de som encostar-se ao prédio da Prefeitura, onde ocorreria mais um dia da greve dos excluídos, e a senhora se aproximou gentilmente do grupo. Logo as caixas do veículo eram amenizadas a ponto de surgirem as primeiras reclamações dos grevistas, abafadas pelo gesto de mão erguida que Alessandra fazia solicitando paciência dos trabalhadores. Confesso que até eu me animei com a redução dos decibéis, afinal, uma das táticas mais comuns a uma paralisação é ficar repetindo motes até que o outro lado, o patrão, ou aqueles que estão à mercê da disputa, a população e os vizinhos do protesto, exijam a negociação em nome da preservação dos tímpanos. Nessa toada, bordões como “Servidor na rua, prefeito a culpa é sua” e “Você pagou com traição, vai ter troco na eleição” tocavam mais em Curitiba do que o sucesso do momento de Michel Teló (Nossa, assim você me mata, ai se eu te pego). E, embora eu ficasse sem ouvir a coesa argumentação porque no momento do diálogo travado entre a dirigente sindical e anciã as caixas sonoras reproduziam “Chora, não vou chorar, às 30 horas vou conquistar”, imaginei que alguma ária ganhava destaque naquela banda de repetições.
Após mais um dia encerrado da greve e com os ouvidos refeitos, enfim fui investigar o que havia sido dito para Pimenta a ponto de ela deixar-se convencer. Questionei:
- Por que você mandou abaixar o som naquela hora?
- Porque o papagaio da senhora ia enfartar.
- Repete!
- A senhora disse que o papagaio dela ia enfartar.
- Repete. Como assim?
Falando baixo, repassa Alessandra, a senhora protestou que o seu papagaio morria de medo do caminhão. Mais especificamente do barulho ensurdecedor que aquele pássaro sem asas era capaz de ecoar. Bastava o troglodita dobrar a esquina, trazendo seu gogó esbaforido, que o Alípio – este era seu nome - começava a se tremer todo. A empregada, segundo relato, até contou para sua dona que o coitado do loiro desmaiou ao som do funk “Dança Ducci, dança na eleição, queremos trinta horas sem exclusão”. As batidas foram o desiquilibrando dentro da gaiola de prédio e ele tombou, exausto, deveras.
- Não é sério. Não é sério. Não pode ser sério – dizia eu.
- Não, é sério sim – dá novo tom a frase, Alessandra. – A senhora disse que com os fogos o papagaio já está se acostumando, reflexo das temporadas passadas na brisa de fim de ano em Balneário Camboriú, onde é impossível fugir dos estalos no dia 31 de dezembro. Mas, com as músicas, tão pouco apreciadas na intensidade e na quantidade pelos ares do Centro Cívico, com essas trilhas ele ainda ia demorar mais um pouco.
- E o que a gente faz amanhã? – perguntei, intrigado.
- Vamos abaixar o som até que o loiro curitibano se acostume conosco – apimentou, Ale.
Pois é, quem sabe o papagaio de prédio não aprende a cantar “Pede pro tio Beto, 30 horas e fico quieto...”.
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* Crônica presente no livro Crônicas dos Excluídos. Obra aborda a saga dos funcionários da saúde de Curitiba que permaneceram 74 dias de greve para lutar pela redução de jornada para 30 horas que havia sido concedida para a maior parte dos servidores da Prefeitura de Curitiba. A greve ocorreu no fim de 2011 e começo de 2012. Mas os excluídos só conseguiram a redução em 2014.

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